Mausoléu

Mausoléu

Em janeiro de 1866, o vereador António Júlio de Melo propõe à Câmara Municipal da Ribeira Grande resgatar os restos mortais de Gaspar Frutuoso, recentemente identificados na matriz daquela vila e em risco de se perderem1, através da sua exumação e deposição em mausoléu. A proposta incluía a deposição das cinzas em uma “urna de madeira” e, posteriormente, num mausoléu que fosse “digno de tão grande Varão e recorde aos vindouros o alto apreço em que os Michaelenses tinhão a sua memória”2, recorrendo-se, para o efeito, a subscrição pública.

Na mesma altura, o Governo Civil de Ponta Delgada autoriza a realização das despesas3 e a Câmara Municipal solicita autorização para a dita exumação ao Ouvidor de Ponta Delgada e insta a divulgação da subscrição a todos os padres da ilha4 e às restantes câmaras municipais de São Miguel5. Em julho de 18666 é autorizada a exumação e a despesa com o monumento que, por proposta do mesmo vereador António Júlio de Melo, se iria erigir no cemitério de Nossa Senhora da Estrela.

A exumação seria feita a 3 de setembro de 1866, permanecendo, enquanto o mausoléu não estivesse feito, as cinzas em urna na própria igreja matriz7. Não havendo, ainda, o dinheiro suficiente para as exéquias fúnebres e um mausoléu condigno, a Câmara da Ribeira Grande lança um apelo ao contributo público dos mais abastados da ilha8. Para o efeito, foram enviados vários ofícios, obtendo-se a franca colaboração de muitos para este desiderato9.

A receita obtida pela câmara municipal da Ribeira Grande foi de 830$000 reis, sendo que 400$000 reis foram suportados pelos cofres municipais. A despesa importou no valor de 787$675 reis, repartindo-se entre 661$140 reis para o mausoléu, a sua condução e assentamento, e o resto para os atos religiosos e outros serviços da homenagem10. Das contribuições particulares para o mausoléu, num total de 299$200 reis11, destacam-se as doações de José do Canto (120$000 rs)12, do Visconde da Praia (48$000 rs)13 e do marquês da Ribeira14. O saldo positivo de 42$325 mil reis deu entrada nos cofres do município, para compensação da avultada verba que o mesmo havia despendido com a efeméride15.

Por proposta do mesmo vereador António Júlio de Melo, a Câmara pede proposta e orçamento para o mausoléu a Germano Serrão Arnaud, agente transitário em Lisboa, enviando o epitáfio pretendido e informando do limite orçamental de 600 mil reis. No mesmo pedido de orçamento, a Câmara informa que, independentemente do modelo escolhido, o mausoléu teria de ser rematado com “uma cruz, um livro junto ao pegão da cruz e sobre o livro um cordeiro”16. Foram presentes três modelos de mausoléus, tendo a câmara escolhido o modelo nº3. Mais se encomendou ao mesmo Germano Serrão Arnaud um gradeamento de ferro fundido para o mausoléu, “proporcionado e em harmonia com o modelo do mesmo”17. Em mármore, o mausoléu seria feito nas oficinas de António Augusto Xavier , em Lisboa.

Mausoléu de Gaspar Frutuoso, no cemitério de Nossa Senhora da Estrela. Fotografia: @Luís Furtado
Detalhes do mausoléu de Gaspar Frutoso. Fotografia: @Luís Furtado

Na inscrição consta:

“AQUI JAZEM AS CINZAS
do
Revdº. Gaspar Fructuoso, historiador
das ilhas dos Açores, e doutor
graduado em Philosophia e
Theologia, pela universi-
dade de Salamanca,
o qual
Nasceu na cidade de Ponta Delgada em
1522, e faleceu n’esta villa em
24 d’agosto de 1591.

Tendo recusado o Bispado d’Angra, que, em seu fa-
vor quizera resignar o exm.º Bispo D. Manoel
d’Almeida, preferio à Mitra a Vigararia da
Matriz d’esta villa, que servio por quarenta
annos.

A CÂMARA MUNICIPAL D’ESTE CONCELHO, A EXPENSAS DO MUNICÍPIO, E COADJUVADA PELOS DONATIVOS D’ALGUNS MICHALENSES, MANDOU ERIGIR ESTE MONUMENTO À MEMÓRIA DE VARÃO TÃO INSIGNE EM LETRAS E EM VIRTUDES.
___ 1867 ___”

Inscrição do mausoléu de Gaspar Frutoso, com referência aos diversos contributos da sociedade local para a sua compra. Fotografia: @Luís Furtado
Marca das oficinas de cantaria de António Augusto Xavier, em Lisboa. Fotografia: @Luís Furtado

A 20 de dezembro de 1867 realizar-se-iam as exéquias fúnebres e trasladação das cinzas para o mausoléu no cemitério de Nossa Senhora da Estrela. A cerimónia teve início na igreja matriz da Ribeira Grande onde se cantou um ofício de nove lições e uma missa por alma de Gaspar Frutuoso. Seguiu, depois, o préstito para o cemitério, formando duas alas, acompanhado pela banda marcial Lira do Norte, de Rabo de Peixe. A urna funerária seria conduzida pelo Padre José Caetano Dias, Venâncio José de Medeiros, Guilherme Joaquim da Costa e Mariano José Ferreira. O vereador António Júlio de Melo, proponente da iniciativa, faria um discurso junto ao mausoléu, após a deposição das cinzas19.

Em 1922, por ocasião da celebração dos 400 anos do nascimento de Gaspar Frutuoso, semelhante cerimónia seria repetida, tendo havido uma missa na igreja matriz, seguindo-se um cortejo em direção ao cemitério, “onde as cinzas do imortal historiador insulano, foram recolhidas num frasco de vidro, o qual foi encerrado depois numa urna oferecida pela câmara municipal”20. O cortejo seguiu, depois, para o Teatro Ribeiragrandense, ainda em construção, para a sessão solene em homenagem a Gaspar Frutuoso21.


1 “exhumar aquelles restos, a fim de se não confundirem com outros, em virtude de se ter arrancado, e quebrado a Lapide que cobria a sua sepultura rasa, que hoje não tem prova algua, por onde possa conhecer-se, alem das pessoas, que a arrancarão e virão arrancar a pedra sepulcral, na qual (não obstante estar partida, e abandonada no adro daquella Igreja), se vê claramente escripto o que abona a autenticidade da sepultura, que hoje se sabe qual é; mas que passando a geração presente, ninguém poderá descubrir o seu sítio”.
2 AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação de 11 de janeiro de 1866, pp.114v, 115.
3 O Melrinho, nº681 de 21 de março de 1866, p.2.
4 AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação de 15 de fevereiro de 1866, p.133.
5 A Persuasão, nº224 de 11 de abril de 1866, p.2.
6 AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação de 26 de julho de 1866, pp.184, 184v.
7 AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação 30 de agosto de 1866, pp. 195, 195v.
8 AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação 3 de setembro de 1866, p. 197.
9 AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação 11 de outubro de 1866, p.9v.
10 A Persuasão, nº312 de 8 de janeiro de 1868, p.3. Veja-se, igualmente, AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação 26 de dezembro de 1867, p.137.
11 A Persuasão, nº265 de 6 de fevereiro de 1867, p.3.
12 AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação 3 de janeiro de 1867, p.32.
13 A Persuasão, nº263 de 9 de janeiro de 1867, p.2.
14 A Persuasão, nº282 de 12 de junho de 1867, p.3.
15 AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação 26 de dezembro de 1867, p.137.
16 AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação 17 de janeiro de 1867, p.36v.
17 Veja-se AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação 11 de abril de 1867, p.62; AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação 21 de maio de 1867, p.73v.
18 Veja-se Queiroz, Francisco – “Canteiros de Lisboa: construtores do cemitério romântico”. In Boletim do Grupo “Amigos de Lisboa”, II Série, Nº13, Julho/Dezembro 2000, pp.55-70.
19 A Persuasão, nº311 de 1 de janeiro de 1868, p.1.
20 Os Açores. Revista Ilustrada. Ponta Delgada: Oficina das Artes Gráficas, Nº2 (Agosto 1922), p.35.
21 A reportagem sobre esta efeméride pode ser lida e vista em Os Açores. Revista Ilustrada. Ponta Delgada: Oficina das Artes Gráficas, Nº2 (Agosto 1922), pp. 34-36.