Vida e Obra
Dr. Gaspar Fructuoso terá nascido no ano de 1522, em Ponta Delgada. Assim o defendem cronistas insulares posteriores, embora sem prova documental. Os mesmos afirmam igualmente que era filho de pais ricos e nobres de Ponta Delgada. E efetivamente, a sua ascendência assume alguma unanimidade na atribuição da paternidade a Frutuoso Dias, rico mercador e proprietário de Ponta Delgada, e maternidade a Isabel Fernandes1.
Da sua juventude pouco se sabe, permanecendo no registo de alguns cronistas a especulação do que teria sido a sua infância e primeira juventude e as razões que o levaram a sair da ilha para estudar. Como refere Miguel Tremoço de Carvalho, “a escassez de dados sobre este período pré-universitário de Frutuoso não permite uma resposta certa e concreta”2.
Estudou na Universidade de Salamanca entre 1548-49 e depois entre 1553-58, embora com algumas interrupções. Deste período de estudo, resultou o seu bacharelato em Artes (1549), a sua ordenação como presbítero em São Miguel (entre 1553 e 1555) e o seu bacharelato em Teologia (9 de fevereiro de 1558).
Entre 2 de outubro de 1558, era já ele graduado em Teologia e Artes, e 16 de março de 1560 prestou serviço paroquial na Matriz da Lagoa, como o comprovam os documentos por ele redigidos e assinados. E, entre 1560 e 1564, residiu em Bragança, ao serviço do Bispo D. Julião de Alva, onde colaborou na redação das primeiras constituições sinodais daquela diocese.

O seu doutoramento só terá tido lugar após o regresso ao reino, ou seja, após deixar o serviço paroquial na matriz da Lagoa e enquanto esteve em Bragança, terminando-o antes de ser nomeado para a matriz da Ribeira Grande. No entanto, desconhece-se a universidade onde o realizou.
Na igreja de Nossa Senhora da Estrela, matriz da Ribeira Grande, paroquiou durante 26 anos, tendo sido confirmado como seu vigário a 20 de maio de 1565 e como seu pregador a 19 de junho do mesmo ano. Tinha Gaspar Frutuoso 43 anos.
Enquanto vigário na Ribeira Grande, Gaspar Frutuoso foi sempre considerado figura de referência, a julgar pela participação em reuniões da vereação, nomeadamente a que decidiu pela criação do lugar de médico no concelho, a ser entregue ao Dr. Gaspar Gonçalves, seu amigo3.

Saudades da Terra, título atribuído à sua obra maior e mais recuada memória atlântica existente, terão sido redigidas, ou pelo menos corrigidas e acrescentadas, depois da sua fixação na Ribeira Grande, na década de 80 do século XVI, altura em que a coroa portuguesa integraria a espanhola. A seu respeito, refere José Damião Rodrigues:
“Gaspar Frutuoso, com as Saudades da Terra, pretendeu fazer um elogio aos Açores e às suas gentes, servindo o texto como um instrumento para a promoção do arquipélago junto da corte castelhana. Mobilizando a sua formação intelectual e toda uma vasta rede de contactos, Gaspar Frutuoso produziu uma narrativa no interior da qual as ilhas açorianas surgem devidamente integradas no mundo atlântico e insular de Quinhentos”4.
A obra, que “denota uma visão globalizante do Atlântico” e “o conhecimento da existência de um mundo insular”5 inserido nesse Atlântico, divide-se em seis livros, mais um. Gaspar Frutuoso abordou as ilhas de Cabo Verde e Canárias (Livro I), a Madeira (Livro II), Santa Maria (Livro III), São Miguel (Livro IV) e Terceira, Faial, Pico, Flores, Graciosa e São Jorge (Livro VI). Para além disso, a obra integra ainda a história de dois amigos e suas viagens, por alguns tomada como autobiográfica (Livro V). Por fim, um outro manuscrito, de caráter filosófico-teológico, intitulado Saudades do Céu6, que terá sido escrito anteriormente.
Com essa abordagem de globalização atlântica, Gaspar Frutuoso mostrou ser não só um homem letrado, mas um humanista preocupado e atento às maiores novidades literárias e científicas do seu tempo, como aliás se comprova pela sua livraria, também legada aos Jesuítas. Como referiu Miguel Tremoço de Carvalho, “ao debruçar-se sobre a história das ilhas atlânticas, Frutuoso teve o mérito e a perspicácia de as interligar e de as enquadrar dentro do espaço que as rodeia, abrindo-as ao mundo exterior”7.
Após a sua morte, em 1591, o manuscrito foi entregue aos Padres da Companhia de Jesus do Colégio de Ponta Delgada e na sua posse se manteve até à expulsão, em 1760. O manuscrito original ficaria, então, na posse do Governador da ilha, António Borges de Bettencourt, passando, depois, para seu filho, Luís Bernardo Borges de Bettencourt, vigário da Matriz da Lagoa. Ao Governo do reino seria enviada uma cópia do manuscrito, que se encontrava na Biblioteca Pública de Lisboa8, atual Biblioteca Nacional de Portugal9.
O vigário da Lagoa, ao falecer, deixaria o manuscrito a José Velho Quintanilha, que depois, em 1840, o venderia ao 1º Visconde da Praia10, Duarte Borges da Câmara e Medeiros, por 200$000rs11. A sua propriedade passou, depois, para seu filho, António Borges de Medeiros Dias da Câmara e Sousa, 1º Marquês da Praia e Monforte. O acesso ao manuscrito original foi dificultado pela família detentora e nem mesmo no âmbito das comemorações de 1922 os Praia e Monforte acederam a que os investigadores tivessem acesso ao autógrafo12. No entanto, seria o 3º Marquês da Praia de Monforte, António Borges Coutinho de Medeiros Sousa Dias da Câmara, a doar, em 195013, o manuscrito à Junta Geral do Distrito Autónomo de Ponta Delgada, depois depositado na Biblioteca Pública daquela cidade, permitindo, assim, o acesso ao autógrafo original e a posterior publicação integral das Saudades da Terra.

Foram várias as tentativas de publicação do manuscrito, sobretudo a partir de meados do século XIX. Não pretendendo fazer-lhes uma resenha meticulosamente rígida, apontamos, apenas, alguns momentos desse percurso de publicação do autógrafo. Desde a tentativa da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, que, em 1853, faria circular um prospeto a anunciar a publicação da obra no jornal o Agricultor Micaelense14. A pretensão não se realizou, tendo-se publicado, apenas, excertos naquele jornal15. À tentativa de uma edição fac-similada, quando, em 1855, Francisco José Machado se propõe a fazê-la em dois volumes e por 3$600 reis para assinantes. Também o Archivo dos Açores, pelas mãos de Ernesto do Canto, estudioso de Gaspar Frutuoso, publicou excertos das Saudades Terra16, sobretudo referentes à ilha de São Miguel17 e variadas são outras referências à obra em inúmeros jornais açorianos no século XIX e XX.
Em 1873, é publicada uma primeira edição do Livro I e, no mesmo ano, Álvaro Rodrigues de Azevedo publica notas ao Livro II18. Em 1876, Francisco Maria Supico e José Pedro Cardoso, com base na parte genealógica do Livro IV, editam a História Genealógica de S. Miguel das Saudades da Terra, que, em 1877, a Livraria Gil anunciava ter à venda19. Em 1894, o Liceu de Ponta Delgada, aproveitando as comemorações henriquinas, apresentaria à Academia Real das Ciências de Lisboa uma proposta de publicação das Saudades da Terra20. E, em 1915, a recém-criada Comissão de História Insulana propunha, entre várias ideias, se fizesse copiar vários manuscritos insulares para publicação no futuro “Archivo Insulano”, onde se incluíam as Saudades da Terra21.
Não obstante todas essas tentativas e iniciativas, são de salientar, sem dúvida, as edições de 1922, enquadradas nas comemorações dos 400 anos do nascimento de Gaspar Frutuoso, e as edições feitas a partir da década de 50, já sob a égide do recém-criado Instituto Cultural de Ponta Delgada (ICPD). Efetivamente, são de relevante importância a edição do Livro III, em 1922, com os contributos de João de Simas e de Rodrigo Rodrigues; do Livro I, em 1939, com o contributo de Manuel Monteiro Velho Arruda; e as edições de 1977, 1998 (esta com contributo de Manuel Monteiro Velho Arruda e João de Simas, no Livro III, e de Rodrigo Rodrigues, no Livro 1) e 2005 do ICPD dos 6 volumes da obra. Por fim, salientar a edição das Saudades do Céu, em 2011, obra editada pelo ICPD, mas o alto patrocínio da Câmara Municipal da Ribeira Grande.


O nome de Gaspar Frutuoso faz parte da realidade ribeiragrandense, plasmado em instituições e toponímia no concelho, nomeadamente no centro da cidade. É o caso do antigo Instituto Gaspar Frutuoso, subsidiado pelas corporações administrativas do concelho da Ribeira Grande, onde se passou a ministrar, em 1914 e gratuitamente, as disciplinas de instrução secundária, até ao 3º ano, do curso dos liceus22. O seu nome possui atualmente a EB1,2/JI Gaspar Frutuoso, na Ribeira Grande. Na toponímia, destaque-se a rua do Gaspar Frutuoso e o Largo Gaspar Frutuoso, junto à matriz da Ribeira Grande. Em Ponta Delgada, o nome ficou registado na Avenida Gaspar Frutuoso e no antigo Jardim Gaspar Frutuoso, hoje Antero de Quental

Sobre Gaspar Frutuoso, recomenda-se a leitura de Frei Agostinho de Mont’Alverne23, Padre António Cordeiro24, Francisco Afonso de Chaves e Melo25, António Caetano de Sousa26, José de Torres27, Inocêncio da Silva28, Diogo Barbosa Machado29, Ernesto do Canto30, Álvaro Rodrigues de Azevedo31, Damião Peres32, Manuel Monteiro Velho Arruda33, Morgado João de Arruda34, João de Simas35, Rodrigo Rodrigues36, João Marinho dos Santos37, Jorge Abreu Arrimar38, Miguel Tremoço de Carvalho39 e a Enciclopédia Açoriana40.
1 Rodrigues, Rodrigo – Notícia biográfica do Dr. Gaspar Frutuoso. Ponta Delgada: ICPD, 1991, pp.17, 18, 57-72.
2 Carvalho, Miguel Tremoço de – Gaspar Frutuoso – O Historiador das Ilhas. Funchal: CEHA/SRTC, 2001, p.19.
3 AMRG – Arquivo da Câmara Municipal da Ribeira Grande. Ata da vereação de 19 de abril de 1578, fl.68v a 70.
4 Rodrigues, José Damião – “Gaspar Frutuoso”. In Enciclopédia Açoriana, acessível em: http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/default.aspx?id=9828
5 Carvalho, Miguel Tremoço de – Gaspar Frutuoso – O Historiador das Ilhas. Funchal: CEHA/SRTC, 2001, p.77.
6 Veja-se Frutuoso, Gaspar – Saudades do Céu. Ponta Delgada: ICPD, 2011; Luz, José Luís Brandão da – “As saudades do céu do Doutor Gaspar Frutuoso”. In Revista Insulana. Ponta Delgada: ICPD, 2011, Vol.67, pp.31-37.
7 Carvalho, Miguel Tremoço de – Gaspar Frutuoso – O Historiador das Ilhas. Funchal: CEHA/SRTC, 2001, p.101.
8 O Preto no Branco, nº141 de 8 de setembro de 1898, p.3.
9 De entre as várias cópias parcelares que a Biblioteca Nacional possui, cremos que esta cópia poderá tratar-se do manuscrito ali conservado, com data provável de redação entre 1701 e 1800, encadernada, e com 647 fólios. BN – Coleção de Manuscritos Reservados, cota: COD.7380.
10 A Persuasão, nº215 de 7 de fevereiro de 1866, p.2.
11 Autonomia dos Açores, nº52 de 25 de fevereiro de 1894, p.2.
12 Leite, José Guilherme Reis – “A historiografia açoriana na 1ª metade do século XX. Uma tentativa de compreensão”. In Revista Arquipélago – História. Ponta Delgada: CEGF/UAC, 2ª série, Vol. V, 2001, p.532.
13 Veja-se notícia em A Ilha, nº958 de 5 de agosto de 1950, p.1. Veja-se, ainda, A Ilha, nº888 de 2 de abril de 1949, p.4.
14 Ver também O Agricultor Michaelense, nº46 de 1 de outubro de 1851, p.764.
15 O Agricultor Michaelense, nº15 de 20 de dezembro de 1844, p.4.
16 Vol. I, 403-434, 458-466 e 536-541; Vol. II, 85-93, 172-186 e 188-190; Vol. X, 486-490; Vol. XII, 122-157.
17 Vejam-se notas genealógicas da sua autoria, retiradas dos livros III e IV, conservadas no seu arquivo em BPARPD – Arquivo Ernesto do Canto. Arvores genealogicas extrahidas dos livros terceiro e quarto das Saudades da Terra do Dor Gaspar Frutuoso. Cota: EC Ms 133 A.
18 Frutuoso, Gaspar – As Saudades da Terra: historia das Ilhas do Porto Sancto Madeira Desertas e Selvagens: Manuscripto do século XVI. Anotado por Álvaro Rodrigues de Azevedo. Funchal: Typ. Funchalense, 1873.
19 O Progresso: folha açoriana política e noticiosa, nº17 de 18 de março de 1877, p.4. Consulte-se Saudades da Terra: História Genológica de São Miguel. Ponta Delgada: Typ. do Amigo do Povo, 1876.
20 Diário de Anúncios, nº2716 de 10 de março de 1894, pp.1,2.
21 União, nº6296 de 21 de maio de 1915, p.1.
22 O Autonómico, nº807 de 7 de novembro de 1914, p.2.
23 Monte Alverne, Agostinho de (Fr.) – Crónicas da província de S. João Evangelista das ilhas dos Açores. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1960-1962.
24 Cordeiro, António (P.e) – Historia Insulana das ilhas a Portugal sugeytas no Oceano Occidental. Angra do Heroísmo: Secretaria Regional da Educação e Cultura, 1981.
25 Melo, Francisco Afonso de Chaves e – A Margarita Animada. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994.
26 Sousa, António Caetano de – História genealógica da casa real portuguesa. Coimbra: Atlântida, 1946.
27 O Philologo, nºs 10, 11 e 15 de maio e de 1 de junho de 1844.
28 Silva, Francisco Inocêncio da – Diccionario bibliographico portuguez: estudos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1888; Catálogo dos bispos da igreja de S. Salvador da cidade de Angra. Angra do Heroísmo: [s.n.], 1722.
29 Machado, Diogo Barbosa – Biblioteca Lusitana histórica, critica e cronológica. Lisboa: Bertrand, 1931.
30 Archivo dos Açores, vol. I e X.
31 Azevedo, Álvaro Rodrigues de – As Saudades da Terra: historia das Ilhas do Porto Sancto Madeira Desertas e Selvagens: Manuscripto do século XVI pelo Doutor Gaspar Fructuoso. Funchal: Typ. Funchalense, 1873.
32 Peres, Damião – Saudades da terra do Dr. Gaspar Frutuoso. Introdução e notas de Damião Peres. Ponta Delgada: Tip. do Diário dos Açores, 1925; Saudades da Terra do Dr. Gaspar Frutuoso / introdução e notas de Damião Peres. Ponta Delgada: Tip. do Diário dos Açores, 1925.
33 Vide Frutuoso, Gaspar – Saudades da Terra. Vol. I, precedido de um ensaio crítico por Manuel Monteiro Velho Arruda. Ponta Delgada: Oficina de Artes Gráficas, 1939.
34 Cópia parcelar, anotada. Veja-se BPARPD – História inçulana composta pello Reverendo Doutor Gaspar Fructuoso annotada do seu original por mim João de Arruda Botelho e Câmara. 1814. Cota: Cofre 167 RES.
35 Simas, João de – “Notícia bibliográfica das Saudades da Terra”, In Frutuoso, Gaspar – Saudades da Terra. Vol. III. Ponta Delgada: Typ. do Diário dos Açores, 1922.
36 Rodrigues, Rodrigo – Notícia Biográfica do Dr. Gaspar Frutuoso. Ponta Delgada: ICPD, 1991. Originalmente publicada em Frutuoso, Gaspar – Saudades da Terra. Vol. III Ponta Delgada: Typ. do Diário dos Açores, 1922.
37 Santos, João Marinho dos – Os Açores nos séculos XV e XVI. [Ponta Delgada]: Direção Regional dos Assuntos Culturais/Universidade dos Açores/Centro de Estudos Gaspar Frutuoso, DL. 1989.
38 Arrimar, Jorge Abreu – Cinco cronistas dos Açores: subsídios para a historiografia açoriana. In Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira. Angra do Heroísmo: Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1984, Vol. 42, p. 5-129.
39 Carvalho, Miguel Tremoço de – Gaspar Frutuoso – O Historiador das Ilhas. Funchal: CEHA/SRTC, 2001.
40 Acessível em http://www.culturacores.azores.gov.pt/ea/pesquisa/default.aspx?id=9828